Santos e a tradição sobre a vocação sacerdotal, o encargo terrível, a necessidade de santificação

 Excertos do livro "A Selva" de Santo Afonso Maria de Ligório reunidos em quatro itens.

1. O Sacerdócio, aos olhos dos santos, é um encargo terrível.
 

Para entrar em qualquer estado de vida, é necessário ser chamado por Deus, porque, sem vocação, se não é impossível, é pelo menos muito difícil satisfazer às obrigações desse estado e salvar-se.
Mas, se para todos é necessária a vocação, sobretudo é indispensável para abraçar o estado eclesiástico. É a porta única para se entrar na Igreja; quem lá se introduzir doutro modo é um bandido e um ladrão, diz o Senhor(...). S. Cirilo de Alexandria conclui que o que recebe as Ordens sacras, sem a elas ser chamado por Deus, se torna culpado de roubo, porque arrebata uma graça que Deus lhe não quer confiar. Também S. Paulo declarou que a vocação divina é necessariamente requerida para se ser elevado ao sacerdócio, e cita o exemplo de Aarão e do próprio Jesus Cristo. Ninguém por si mesmo assume esta honra, que não se confere senão a quem é chamado por Deus, como Aarão. Foi assim que nem o próprio Jesus Cristo se arrogou a função de Pontífice, que lhe conferiu Aquele que lhe disse: Tu és o meu Filho.
Ninguém pois, por mais inteligente, sábio e santo que seja, pode entrar no santuário, por iniciativa próprio; é necessário que seja chamado e introduzido lá por Deus. O próprio Jesus Cristo, que foi em verdade o mais santo e sábio dos homens, por isso que é cheio de graça e de verdade, e nele estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência, o próprio Jesus Cristo, digo, para se revestir da dignidade de sacerdote, quis ser chamado a ela por Deus.
Ainda mesmo quando estavam certos da sua vocação divina, tremiam os santos de assumir o sacerdócio. (...) 

Dizia S. Clemente de Alexandria que os que estavam verdadeiramente animados do Espírito de Deus, se encontravam possuídos de temor ao receberem o sacerdócio, como um homem que treme à vista dum fardo enorme, que lhe vão lançar sobre os ombros, com perigo de ele ficar esmagado. Santo Efrém nos diz que não encontrava ninguém que quisesse ser ordenado de presbítero (Ep. ad Joan. hieros.). Um concílio de Cartago decretou que os que fossem julgados dignos do sacerdócio e o recusassem, podiam ser obrigados a deixar-se ordenar. “Ninguém, dizia S. Gregório de Nazianzo, recebe de boa vontade o sacerdócio”. Refere o diácono Pôncio que S. Cipriano, ao saber que o queriam ordenar sacerdote, correra a esconder-se por umildade: Humiliter secessit (Vita S. Cypr.). O mesmo fez, por igual motivo, S.Fulgêncio. Prevendo que ia ser eleito, correu a esconder-se num lugar desconhecido. Refere Sozomeno que também Sto. Atanásio fugira para não ser elevado ao sacerdócio. Santo Ambrósio fez grandes resistências, como ele próprio afirma. S. Gregório procurou disfarçar-se em trajo de negociante para escapar à ordenação, apesar de Deus ter mostrado por milagres que o chamava à ordenação. Para não ser ordenado, Sto. Efrém se apresentou como insensato e S. Marco cortou o dedo polegar. O mesmo motivo levou Sto. Amon a cortar as orelhas e o nariz; e, como apesar disso o povo insistia em o fazer ordenar, fez-lhe a ameaça de cortar também a língua; então cessaram de o perseguir. 
É sabido que S. Francisco, ordenado diácono, não quis receber o presbiterato, porque uma visão lhe tinha revelado que a alma do padre deve ser pura como a água, que lhe fôra mostrada num vaso de cristal. Do mesmo modo o abade Teodoro não era senão diácono, e todavia nunca quis exercer as funções da sua Ordem, porque um dia ao fazer a oração viu uma coluna de fogo e foi-lhe dito: “Se tens o coração inflamado como esta chama, então exerce a tua Ordem”. O abade Motuès era sacerdote, mas não quis celebrar, porque se julgava indigno disso.

Antigamente, entre os monges, cuja vida era tão austera, poucos se encontravam que fossem sacerdotes. Aos olhos deles, aspirar ao sacerdócio era presunção. Por isso S. Basílio, querendo experimentar a obediência dum monge, mandou-lhe que pedisse publicamente o presbiterato; o que foi olhado como um ato de obediência; porque, fazendo um tal pedido, o religioso expunha-se a passar por um grande orgulhoso. Mas, enquanto os santos, que só vivem para Deus, têm tanta repugnância em receber as Ordens e se crêem indignos delas, — como é que tantos correm às cegas para o sacerdócio e não descansam até que lá cheguem, por caminhos direitos ou tortos? Ai, exclama S. Bernardo, esses são para lamentar; porque, para eles, o estarem no número dos sacerdotes será o mesmo que estarem inscritos na lista dos condenados! Porquê? Porque de todos esses padres apenas haverá algum que tenha sido chamado por Deus. O que os impediu para o santuário foi o interesse, a ambição, a influência dos pais, e assim não se ordenam para o fim que o sacerdote deve ter em vista, mas para os fins perversos do mundo. Por isso os povos permanecem ao abandono e a Igreja desonrada. Tantas almas se perdem, ao mesmo tempo que tais padres se afundam na ignomínia!

2. Qual deve ser a santidade do padre como ministro do altar 


Quer Sto. Tomás que se exija aos padres maios santidade que aos simples religiosos, em razão das funções sublimes que exercem, especialmente da celebração do sacrifício da missa. A razão é que recebendo uma Ordem sacra, dedica-se o homem ao mais alto ministério, que consiste em servir a Jesus Cristo até no Sacramento do altar; o que exige uma santidade interior mais elevada que a que se requer para o estado religioso. Em igualdade de circunstâncias pois, um clérigo de Ordens sacras, obrando contra a santidade, peca mais gravemente que um religioso, que não esteja revestido de nenhuma Ordem sacra. É muito conhecida a sentença de Sto. Agostinho: “Dificilmente um bom monge dá um bom clérigo”. Deste modo, nenhum clérigo pode ser olhado como bom, se não exceder em virtude um bom religioso.“Um verdadeiro ministro do altar forma-se para Deus, e não para si”. Significam estas palavras de Sto. Ambrósio que um padre deve esquecer as suas comodidades, as suas vantagens e os seus gostos; deve persuadir-se que, desde o dia em que recebeu o sacerdócio, não é seu, mas de Deus.
Assim fala o profeta Malaquias; e no Levítico lê-se: Serão santos no serviço do seu Deus, e não desonrarão o seu nome; porque hão de oferecer incenso do Senhor e os pães do seu Deus, e por conseqüência serão santos. Se deviam pois ser santos os sacerdotes da Lei antiga, porque ofereciam a Deus apenas o incenso, e os pães de proposição, que eram uma simples figura do adorável Sacramento dos nossos altares, quanto mais devem ser puros e santos os sacerdotes da lei nova, que oferecem a Deus o Cordeiro sem mancha, o seu próprio Filho! Nós oferecemos, observa Estio, não novilhos ou incenso, como os sacerdotes antigos, mas o próprio Jesus Cristo; oferecemos o corpo mesmo do Senhor, que foi suspenso no altar da cruz.

3. Bondade positiva de vida

O terceiro sinal de vocação, para o estado eclesiástico, é a bondade positiva de vida. Primeiro que tudo, deve o ordinando ter uma vida inocente, não manchada de pecados. O Apóstolo exige que aquele que aspira ao sacerdócio seja irrepreensível, conforme o escrevia ao seu discípulo Tito. Nos primeiros séculos da Igreja, quem tivesse cometido um só pecado mortal não podia ser ordenado; prova-o uma decisão do 1.º Concílio de Nicéia. Segundo S. Jerônimo, para ser admitido ao sacerdócio, não bastava estar sem pecado ao tempo da ordenação, era necessário não ter cometido nenhuma falta grave depois do batismo. Verdade é que depois a disciplina a disciplina da Igreja cessou de ser tão rigorosa; mas dos aspirantes a Ordens sacras sempre tem exigido ao menos que, depois das suas quedas graves, tenham conservado a sua consciência bem purificada, durante um período considerável de tempo. É o que vemos numa carta de Alexandre III ao arcebispo de Reims, a propósito dum diácono que tinha ferido outro diácono: o Papa decidiu que, se o culpado estava verdadeiramente arrependido do seu crime, depois de recebida a absolvição e cumprida a penitência, que lhe fosse imposta, poderia ser reintegrado nas funções da sua Ordem, e até, se depois desse exemplo duma vida perfeita, lhe poderia ser conferido o sacerdócio.


4. Ao que se expõe quem entra nas ordens sem vocação

Do que levamos dito resulta que não se poderia escusar de falta grave quem entrasse nas Ordens, sem consciência de possuir os sinais da vocação divina. É o sentir dum grande número de teólogos, tais como Habert, Natal Alexandre, Juenino, e o Continuador de Tournely; e é o que antes deles claramente ensinou Santo Agostinho quando ao falar do castigo infligido pelo Senhor a Coré, Datan e Abiron, — que se haviam ingerido nas funções sacerdotais, sem a elas serem chamados, — afirma que esse exemplo é uma advertência para os que sem vocação aspiram às Ordens sacras.